19 julho 2014

As histórias do Grande Ubaldo


João Ubaldo Ribeiro, 70 anos, Prémio Camões 2008, baiano de nascimento, carioca por opção, autor de Sargento Getúlio, Viva o Povo Brasileiro e A Casa dos Budas Ditosos foi convidado da Festa Literária Internacional de Paraty. Dias depois, recebeu a Pública em sua casa, no Rio de Janeiro, para um divertido papo de um homem das letras.
O avô paterno de João Ubaldo Ribeiro era português. Nasceu em Fafe, onde o escritor brasileiro ainda tem parentes. João, esse avô português, casou-se com a brasileira Amália, que se esmerava na cozinha a fazer pratos de bacalhau para o marido.

foto  Walter Craveiro/FLIP


João Ubaldo Ribeiro regressa à infância, sentado no sofá da sua casa no Rio de Janeiro, dias depois de participar na 9.ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Tenta lembrar-se do que terá levado o avô João a sair de Portugal. "Antigamente, as famílias não contavam isso aos meninos, por isso não sei o que é que o meu avô fez. Ele não deve ter saído por pressão financeira, como os transmontanos geralmente saíam...", conta o autor de Viva o Povo Brasileiro (Ubaldo é publicado pelas edições Nelson de Matos). "Alguma coisa fez e foi deportado pelo meu bisavô. Veio de barco para o Estado de Alagoas. Foi trabalhar para uma fábrica de tecidos pertencente a portugueses, em Penedo, Alagoas, bem antes de as fibras sintéticas tomarem conta do mercado."

Depois de ter vivido em Portugal - dez meses, em 1981 - como bolseiro da Fundação Gulbenkian, João Ubaldo Ribeiro esteve com a família em Berlim a seguir à queda do muro (1990-91). Publicava crónicas no jornal Frankfurter Rundschau e numa delas descreve o avô João como "leitor anticlerical de Guerra Junqueiro". Conta que o português não levava o seu filho jurista "muito a sério intelectualmente" porque os livros que o pai de João Ubaldo escrevia "eram finos e não ficavam em pé sozinhos". Nas crónicas reunidas em Um Brasileiro em Berlim recorda: ""Isto é merda", dizia ele, sopesando com desdém uma das monografias jurídicas do meu pai. "Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos." Já minha avó tinha mais respeito pela produção do meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida."

João Ubaldo, que fez 70 anos em Janeiro, teve uma infância normal. Jogou à bola, tomou banho nu no rio, subiu às árvores e acreditou no "Papai Noel". Os livros eram, para ele, "uma brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas", apesar de o método de ensino lá de casa ser inusitado. Quando o pai percebeu que a criança não sabia usar o ponto e vírgula, obrigou-o a copiar os sermões do Padre António Vieira.

Na sala, a avó Amália fazia tertúlias com o neto sobre o herói predilecto dos dois: o Conde de Monte Cristo. "E meu avô, bebendo cerveja escondido lá dentro, dizia, "ai,ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram Guerra Junqueiro"."

Nas férias ia para casa do avô João e era uma maravilha. "Tinha toda a liberdade para ler o que quisesse. Virava meio-reizinho", lembra o escritor à Pública, enquanto bebe um guaraná.
Além do avô português, o autor de Miséria e Grandeza do Amor de Benedita teve um avô materno itaparicano, o avô Ubaldo. "Político, idealista, gostava de escrever e de fazer discursos." Quando o mandavam para casa do avô Ubaldo, "também era uma beleza, se bem que com estilos completamente diferentes", diz. Este avô escreveu um livro que começou por ser "fininho" - era a história de Itaparica -, mas foi sendo aumentado ao longo da vida. "Virou uma espécie de colcha de retalhos, ele botava todos os acontecimentos da ilha de Itaparica. A última edição é rara. Eu tenho em algum lugar. Os meus livros estão num estado lamentável. Tenho de me mudar daqui durante algum tempo e arrumar a minha vida."

Pequenos roubos em família
Na sua família sempre se roubaram livros das estantes. "O meu avô era o pior. Ia lá a casa e roubava livros ao meu pai, levava debaixo do paletó, escondido. Meu pai tinha ódio." Apesar desta tradição familiar, João Ubaldo Ribeiro não se considera um homem de letras. Sabe que há quem ache que ele faz blague com isso, não é verdade. "Não sou um homem de letras e encaro, geralmente, com imenso tédio o papo de um homem de letras. Não tenho interesse literário. Eu li por circunstâncias da vida. Fui criado numa casa cheia de livros, tive um pai muito rigoroso em relação à minha formação e, ao mesmo tempo, muito liberal no meu contacto com esses livros. Eram milhares e milhares de livros. Um casarão cheio de livros. Então eu li. Li muito mas hoje não sou um velho de letras preocupado como vão as coisas do mundo literário brasileiro, quem são os novos autores que surgiram. Não sou realmente um bom papo de letras", assegura na conferência de imprensa antes da sessão na FLIP. Sendo ou não um bom papo de letras, o que é certo é que, depois de muito ler, João Ubaldo Ribeiro resolveu escrever e apresentou à família um soneto. "Plagiei esse soneto, copiei de uma biografia. Achei na barafunda de livros do meu avô Ubaldo, uma biografia feita para crianças do general Osório, o patrono da cavalaria brasileira, herói da guerra do Paraguai. O general, nas horas vagas, fazia uns poemas e fez um soneto para a noiva. Nem sei se é bom mas quando eu tinha uns oito, nove anos, copiei o soneto e apresentei como meu. Fiz sucesso até ser desmascarado: meu pai descobriu", conta à Pública.

O seu primeiro grande projecto literário foi continuar as aventuras de Narizinho, do escritor Monteiro Lobato. Ainda criança, João Ubaldo ficou arrasado com a notícia da morte do autor da série de livros O Sítio do Pica-pau Amarelo. "Fiquei um pouco desorientado com a morte dele. Não tinha a certeza da realidade ou não do Sítio do Pica-pau Amarelo. Não fazia muita noção, eu só tinha oito ou nove anos, e bobo naquela época, vivia numa cidadezinha pequena. Menino bobo, podia ser muito lido, mas bobo. Só podia ser, nem sujeito aos estímulos de hoje (televisão, etc.), vivia da imaginação. Talvez achasse que Monteiro Lobato me conhecesse ou pelo menos soubesse da minha existência, e quis continuar a obra dele. Comecei a escrever novos livros, só que fiquei meio desorientado talvez por não saber como chegar ao Sítio [do Pica-pau Amarelo] e acabei desistindo."

O pai de João Ubaldo Ribeiro não gostava de explicar ao filho o significado das palavras. Por isso mandava-o procurar os significados no dicionário. O filho, tal como o pai, gostava do cheiro dos livros velhos nas estantes. "Às vezes, [meu pai] me mandava ler e copiar os verbetes. Enfim, era sempre trabalhoso mas eu gostava de dicionários. O que mais me impressionava era um encadernado em cinco volumes, cada volume dessa largura [faz o gesto com as mãos]: o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa (1939-1944), de Laudelino Freire. O primeiro volume era só dedicado à letra "A". Eu adorava o cheiro do Laudelino mas gostava do cheiro de outros livros também. Até hoje gosto de cheirar livros", diz. Ainda tem algum dicionário preferido? "Para cheirar?! Não tenho mais não. Para consultar, tenho um dicionário residente instalado no computador. Tenho todos: o Dicionário Houaiss, o Aurélio, o Aulete."

Sempre gostou de fazer jogos com palavras. Houve uma altura em que quis aprender inglês "a qualquer custo", depois de uma professora se ter rido da sua pronúncia. Sozinho, consultava uma palavra no dicionário inglês-inglês Webster. Se no verbete da palavra a definição tinha uma outra que ele não conhecia, ia consultar essa nova palavra. "Às vezes, enchia o saco. Fazia umas 20 viagens, tinha uns verbetes compridos... Era o meu jogo. Enquanto eu não entendesse todas as palavras de cada verbete consultado, não parava."

Mais tarde, já adulto, este jogo com as palavras continuava. "Eu devia ter vergonha de contar isso, mas tudo é legítimo no processo criador. Já tinha computador mas escrevia com o dicionário impresso ao lado. Só queria verificar uma grafia ou um significado qualquer, mas interrompia o que estava a fazer e passava 20 minutos lendo dicionários. Esquecia o que estava a fazer. Escrevi cenas de propósito só para usar uma palavra nova que tinha visto. E gostei."

Na infância, lá em casa, liam Homero, Camões, Horácio, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha. Mais tarde, João Ubaldo incorporou os clássicos nos seus livros. Hamlet, de Shakespeare, está presente em Sargento Getúlio e Ilíada, de Homero, em Viva o Povo Brasileiro. Também em contos, "citações que eu não digo, mas que quem conhece bem sabe".

No Colégio da Bahia ficou amigo de Glauber Rocha. Graças ao empenho do cineasta e com o apadrinhamento de Jorge Amado, publicou o seu primeiro livro, Setembro não Tem Sentido, em 1968. Estava escrito desde 1963. "É difícil agora lembrar todos os factores que me fizeram publicar. Teve Glauber, teve eu achar que sempre tive jeito para escrever e depois fui trabalhar no Jornal da Bahia, que era muito inovador, onde tinha acesso ao suplemento literário. Foi acontecendo."

Houve uma época em que João Ubaldo e Glauber Rocha trabalharam juntos no jornal. "Chegámos a inventar matéria. Ele chefiava a página de polícia do jornal e naquela época havia pouca violência em Salvador, era uma cidadezinha pacata. Às vezes, às dez horas da noite, hora de fechar o jornal, Glauber não tinha um morto, um assassinato, uma ocorrência policial. Telefonava para o necrotério, para a morgue: "Não morreu ninguém, não?!" [grita] Eu ajudei, uma ou duas vezes, escrevendo uma matéria fictícia sobre delinquência juvenil em Nova Iorque - Do nosso correspondente em Nova Iorque: Delinquência juvenil em Manhattan. Uma irresponsabilidade juvenil a que ninguém ligou."

Talvez influenciado pela profissão de repórter, houve um tempo em que o escritor João Ubaldo Ribeiro tentou "carregar" um "bloquinho de notas" para anotar qualquer coisa. Deixou-se disso. Não só não lhe acontecia nada para anotar, como não entendia o que tinha escrito. "Quando estava pensando numa crónica, passava por uma praça, via um pombo e inventava uma croniqueta na hora. Escrevia no caderninho, mas, quando chegava a casa, não só não entendia a letra como não me lembrava do que tinha escrito." Agora anda sempre com um gravador no bolso. É a sua pen-drive. Tem gravado entrevistas, palestras e conferências de imprensa. "É para os herdeiros. Eu não vou deixar nada... Pelo menos um HDzinho [um disco rígido] bem fornecido de fofocas literárias eu deixo para a viúva e para os filhos." Desata a rir.
O imponderável do sucesso

O riso de João Ubaldo Ribeiro, Prémio Camões 2008, é contagiante. A sua voz possante e gargalhadas ecoam na Tenda dos Autores na 9.ª FLIP, onde em palco responde às perguntas do escritor Rodrigo Lacerda - filho do seu antigo editor, Sebastião Lacerda. Apesar de viver no Rio de Janeiro, na "hora dos romances" é Itaparica, na Bahia, que está presente. "Não nasci em Paris, nasci em Itaparica, tenho que escrever sobre Itaparica." Podia escrever sobre o Rio - gosta muito da cidade onde vive há mais de 20 anos - mas sente-se inseguro. "Tenho medo do meu "carioquês". Posso até gravar um depoimento de um carioca falando em "carioquês", mas, se não trabalhar esse texto, vai acabar saindo com uma cara itaparicano", afirma na FLIP. Não há volta a dar.

Ou haverá: o livro que está a escrever neste momento passa-se no Rio de Janeiro, confessará à Pública, dias mais tarde, na sua casa no Leblon. É o primeiro a passar-se no Rio. "É, é, mas não tenho a certeza dele." Tem tentado escrever mas não está a conseguir. "O livro novo já me parecia nascidinho, concebido na cabeça. Morreu minha irmã querida, mais moça do que eu, de uma forma inesperada, brutal, e o livro desmanchou todo. Até agora não estou bem com isso. No ano que vem, estou querendo ver se dedico a manhã a me isolar hermeticamente. Deixar pegar fogo e não tomar conhecimento. Não pode fazer pela metade. Eu já tentei: alguns amigos, sim, atendo, tais casos, sim. Não! Não se pode atender amigo, nem caso especial. Nada. Ou tranca e esquece ou não faz."

Quando escreveu o seu primeiro livro, considerava-se um escritor político. "Não só era engajado, como mudaria o destino da humanidade. Estando mais uns três ou quatro anos a escrever estava tudo resolvido." Ia não só ser um "grande escritor", como ganhar - "daí a uns dez anos no máximo" - o Prémio Nobel. "Enfim, ser uma presença maiúscula na cultura nacional. Claro que não era, como tão chocantemente se demonstrou", ri-se.

Se um aspirante a escritor lhe pedisse um conselho, aquele que hoje ocupa a cadeira n.º 34 da Academia Brasileira de Letras sugeriria que desistisse enquanto é tempo. "Se isso fosse impossível, eu lhe diria: "Vá em frente, leia muito e todos esses lugares-comuns. Seja humilde, mas combine essa humildade com uma certa obstinação. O resto não é com você. É um mistério."

Não há lógica no êxito ou na repercussão de um escritor. "Jorge Amado era ateu, mas, quando se lhe perguntava o que era necessário para se ser escritor, nunca deixava de finalizar com ênfase: "Tem que se ter um pouco de sorte!" Não sei se seria "sorte" a palavra indicada, mas existe um imponderável qualquer, que eu não sei qual é."

O primeiro livro de grande sucesso na sua carreira foi publicado, no Brasil, em 1971. Sargento Getúlio, que recebeu o Prémio Jabuti para autor-revelação e que a crítica considerou ser herdeiro do melhor de Graciliano Ramos e de Guimarães Rosa, espantosamente só teve a primeira edição em Portugal no final de 2010. "É um livro que está aí há uns 40 anos e até hoje é publicado. Então, em alguma coisa eu acertei", diz na FLIP.

Personagens incontroláveis
Dias depois, na sua casa no Rio de Janeiro, tentamos saber se Ubaldo se lembra como é que essa obra começou. "Tenho dificuldade em lembrar como as coisas começaram. Não sou um escritor que faz planos. Eu até finjo que faço: planejo, tomo notas mas nunca acompanho, nunca sigo as notas, o livro vai ganhando vida própria. Às vezes eu vejo livros meus ficarem com finais surpreendentes ou desdobramentos imprevisíveis." Não sabe se esquece. Se na hora em que escreve sabe e depois esquece e acha que nunca o soube.

Vai seguindo as personagens e não consegue mandar na maioria. É frequente querer que uma morra e ela não morre; que uma se case e ela não se casa. No romance O Sorriso do Lagarto pensava que a personagem homossexual do livro era uma e afinal era outra. "Esse cara, 40 e poucos anos, bem de vida, com uma vida razoável, mora com a mãe e não tem mulher?, suspeitava eu. Mas não era ele, eu fiz tudo! Eu dizia: "É hoje que ele vai sair do armário!" Mas não era ele, era outro."

A personagem principal de Sargento Getúlio é o sargento Getúlio Bezerra, um polícia militar que transporta, através do sertão de Sergipe, um preso político inimigo do seu chefe. Pelo caminho, recorda o passado. Quando recebe a informação de que houve uma mudança de cenário político, não acredita e, em vez de abandonar a missão, segue até ao fim.

O escritor brasileiro não conheceu "um sargento Getúlio", mas conheceu "muitos sargentos" em casa do seu pai, que foi chefe de polícia no tempo da ditadura de Getúlio Vargas e secretário de segurança depois.
"A política em Sergipe, se hoje não é ainda tão branda quanto devia ser, na época era consideravelmente selvagem. Mortos, atentados, coisas assim eram frequentes e meu pai tinha um batalhão da polícia de Sergipe que o servia." Havia os de maior confiança e os que tinham cargos de menor importância. O pai do escritor dormia todos os dias depois da hora de almoço. Esse momento era sagrado, ninguém o podia acordar. "Um dia chegou um sujeito de chapéu, eu tinha nove anos de idade, queria falar com ele. "Não vou acordar meu pai não", disse eu. "Pode ir acordar por minha conta." Falou com tanta seriedade que fui. Era um aviso de que meu padrinho, compadre e opositor de meu pai, tinha encomendado a morte dele em casa. Se não achassem meu pai, matariam o filho mais velho, no caso eu."

Esta é a primeira "lembrança viva" que João Ubaldo Ribeiro tem da "sargentada": "Porque a casa entupiu imediatamente de sargentos do meu pai." O livro não é o retrato de ninguém, é uma combinação (apesar de um dos sargentos de seu pai se chamar Getúlio). Sergipe nessa época, em 1940, tinha um jornal comunista A Verdade, que publicou a seguinte manchete: Manoel Ribeiro lacaio de Wall Street. João Ubaldo conta no palco da FLIP que o seu pai estava de pijama a ler o jornal deitado na rede. Sargento Getúlio estava a seu lado em pé. "O meu pai disse: "Desgraçado! Um dia destes vou queimar essa peste." Dito e obedecido. Meu pai não calou a boca. Eu sou testemunha a favor de meu pai. Sempre teve fama de ter feito isso, mas ele não mandou o sargento queimar o jornal, nem empastelar o jornal todo. Apenas ficou furioso de o jornal ter dito que ele era lacaio de Wall Street. Mas o sargento foi, empastelou o jornal, bateu na comunistada toda e quebrou tudo. Lembro que, quando chegou a notícia, ele afirmou: "Tudo feito!" [risos na plateia] E eu fui retirado do recinto."

A personagem de Sargento Getúlio reproduz a fala do sergipano da época e há quem compare o livro ao Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, diz Rodrigo Lacerda. "Em primeiro lugar, acredite se quiser, eu jamais tinha chegado nem perto de um livro de Guimarães Rosa quando escrevi Sargento Getúlio. Em segundo, Guimarães Rosa não está entre os autores do meu afecto e da minha preferência. Não está mesmo."

João Ubaldo Ribeiro nunca tinha lido Guimarães Rosa quando a ex-mulher levou para casa uma colecção de livros do autor. Primeiras Estórias era um deles. "Eu sempre tive ódio mortal a essa palavra "estórias". Queria jogar fora o livro. Mas peguei Primeiras Estórias, abri ao acaso e começava assim: "A viagem fora planejada no feliz". O que é que eu fiz? [Faz o gesto de fechar o livro com força] Nunca mais li."
Apesar de o seu "santo não casar" com o de Guimarães Rosa, João Ubaldo sabe bem avaliar a sua importância na literatura brasileira. "Eu seria um completo desvairado se dissesse que não tem importância ou é um escritor menor."

Palavras desconjuntadas
Depois de ter escrito Sargento Getúlio, João Ubaldo Ribeiro já sabia que não ia ganhar o Nobel e começou a irritar-se com a ideia que foi surgindo à sua volta de que aquele romance era "uma obra-prima, coisa de génio". Não se estava a ver "naquele negócio até ao resto da vida". Por isso disse a Jorge Amado: "Vou escrever O Filho do Sargento Getúlio, A Volta do Sargento Getúlio e O Sargento Getúlio Cavalga Novamente [risos]. Jorge me deu um esbregue [descompostura], me disse que eu era um irresponsável."

No Rio de Janeiro, mais tarde, pedimos a João Ubaldo que explicasse as linhas finais desse romance, em que algumas palavras parecem ter descarrilado. "Nessa época eu ficava na redacção do jornal até umas dez horas da noite, voltava para casa e pegava no romance. Bebia muito (bebi a maior parte de minha vida) e, como era jovem, resistia à bebida. Ficava tocado pelo álcool mas lúcido o suficiente para continuar a escrever. Mais velho, tentei fazer mas não dava certo."

Um dia, João Ubaldo chegou a casa com a sensação de que ia acabar o livro e excedeu-se na bebida. Escrevia numa máquina moderníssima, eléctrica, que tinha trazido dos Estados Unidos, quando fez um mestrado em Los Angeles. "Se fosse daquelas mecânicas, antigas, arqueológicas que a gente usava em jornal, talvez não tivesse acontecido. Mas naquela era muito fácil bater na tecla. Comecei a sentir uma certa descoordenação motora, de álcool mesmo - não desorientado, embriagado - nas linhas finais do livro. Não me lembro quantas, dez, oito, não sei. Então comecei a desconjuntar as palavras um pouco de propósito e um pouco porque estava bêbado. Tinha intenção de colocar fim mas não botei. E acabei o livro." No dia seguinte, o escritor foi ler o que escrevera com a intenção de "consertar" porque sabia que "estava meio desconjuntado" mas achou bom e assim ficou.

Outra história engraçada na obra de João Ubaldo Ribeiro é a do romance Viva o Povo Brasileiro. Um livro de 856 páginas, Prémio Jabuti 1985. Antes de entregar o manuscrito ao editor, pesou a pilha de papéis: 6,7 kg. Um dia encontrou o editor Pedro Paulo de Sena Madureira que o atiçou: "Você só escreve livrinhos para ler na ponte aérea. Eu quero é ver livro!" João Ubaldo respondeu: "Ah você quer ver livro? Vai ver!" Gostaria que a história fosse outra mas não é. "A génese de Viva o Povo Brasileiro foi querer fazer um livro grande para poder esfregar na cara do Pedro Paulo. Poder dizer-lhe: "Pois, efectivamente fiz"!" Nunca quis reescrever a história do Brasil, não quis escrever a história do ponto de vista do dominado, não quis reescrever nada. "Quis fazer, em primeiro lugar, um romance grande! Quis escrever um romance bem escrito - eu queria caprichar - e grosso!"

Não é só uma provocação que põe o escritor a trabalhar, há outra coisa que lhe gera inspiração: a encomenda. "Gera livro, gera tudo. Cheque gera inspiração", diz na FLIP. Aconteceu-lhe assim com o romance A Casa dos Budas Ditosos (1999). Telefonaram-lhe da editora Objetiva a dizer que tinham pensado nele para fazer parte dos escritores dacolecção Plenos Pecados e o pecado que lhe estava destinado era a preguiça. Ficou ofendido. "Só porque eu sou baiano?", perguntou. [risos] "Não faço", respondeu. "Então escolha um pecado", disseram-lhe. Escolheu o primeiro que lhe veio à cabeça: luxúria. Mas não deu importância. Pensou que "era para agora mas nem tanto". Durante dois anos da sua vida, João Ubaldo Ribeiro almoçava de 15 em 15 dias com alguém que estava "com tudo fechado" para adaptar ao cinema o livro Viva o Povo Brasileiro. Nunca foi filmado. Pensei que era mais uma dessas coisas. Mas não. "Essa fonte de inspiração chegou junto a um contrato. Um vistoso cheque. E eu, para garantir que a inspiração não se esvairia, endossei o cheque!"

Esse livro é dedicado às mulheres - Ubaldo já não se lembra porquê - e quando o escreveu não esperava que viesse a fazer tanto sucesso entre elas. O livro é narrado por uma mulher de 68 anos, nascida na Bahia, que vai recordando as suas aventuras sexuais. No prefácio, o escritor explica que aquele texto lhe foi enviado para casa por uma mulher, depois de ter anunciado publicamente que ia escrever o livro. "Fiz isso para testar algumas amigas sabidonas. As sabidonas, que são poucas, viram logo que ali se sente a voz de um homem. Mas não entro em nenhuma livraria em que as leitoras não me venham perguntar: "É verdade mesmo que essa mulher mandou isso para você?!" Se ficasse claro que é uma narrativa masculina, elas não iam me fazer essa pergunta. Mas é feita universalmente! E eu não recebi coisa nenhuma, mas fico vingado!" As pessoas têm "umas noções engraçadas sobre certas coisas de escrever". Perguntam-lhe: "Como é que você escreveu tão bem aquela cena de homossexualismo?" Passou a responder que treinava com os amigos.
Num Dia dos Namorados, estava numa livraria quando "várias moças" lhe foram pedir autógrafos. "Você vai comprar esse livro para dar ao namorado?", perguntava estupefacto. "Para ver se ele aprende alguma coisa!", respondiam as leitoras. Em Portugal, o romance também já teve várias edições e passou pelo episódio caricato de duas redes de supermercados terem decidido proibir a sua venda, em épocas diferentes, por o considerarem pornográfico.

Do tempo em que viveu em Lisboa, João Ubaldo tem lembranças boas. "Era uma vida quase de pobreza modesta, sem nenhum extremo de necessidade, uma vida quase de estudante, romântica. Morava muito bonitinho num apartamento habitualmente alugado a diplomatas perto de Alvalade. Fiz muitos amigos. Nesse ano (1981), nasceu em Lisboa o meu primeiro filho com Berenice [a sua actual mulher], primeiro filho homem, eu descendente de portugueses, meu pai filho de português." Nessa época também estava em Portugal Glauber Rocha. "Morreu logo. Sou muito ruim para cronologia, Bento nasceu no dia de Santo António e Glauber morreu pouco depois [a 22 de Agosto]. Estava também Jorge Amado, que acompanhou essa tragédia toda [a doença do cineasta]."

Às vezes, João Ubaldo Ribeiro vê-se dividido em dois: o Grande Ubaldo e o Pequeno Ubaldo. O primeiro é "um sujeito inteligente, simpático, educado, sem grandes neuroses, afável, solidário, uma pessoa excelente". O segundo "é um canalha deste tamanho - faz o gesto com a mão - que vive me perseguindo, me xingando, me chamando de preguiçoso, dizendo que não escrevo nada". Ao Pequeno Ubaldo, o escritor já tentou "botar para fora de casa várias vezes" e ele não vai. "Se eu acordo na segunda-feira e digo a Berenice que vou folgar, só vou começar terça-feira, ela me dá força porque eu sou cumpridor mesmo, não mereço outro tratamento. Eu subo para a cobertura, onde trabalho, com a consciência apaziguada. Mas o Pequeno Ubaldo interfere imediatamente. Passado cinco minutos aparece: "Vagabundo, fica aí, não faz nada!" É este o pequeno Ubaldo que me persegue. Está aqui agora, a meu lado." Ao nosso lado.


isabel.coutinho@publico.pt

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