10 março 2014

Comendador Marques dos Reis

Deu no Publico.pt
As asas do comendador
Eram os tempos em que um rapaz de 14 anos viajava de Portugal para o Brasil para começar uma vida nova. Mas Joaquim Marques dos Reis não era um rapaz qualquer. “Eu costumo dizer que quando desembarcou em Belém [do Pará, na Amazónia] trazia uma fortuna enorme com ele”, conta o filho, João. “Trazia a noite, o dia, a maleta da roupa e uma cabeça cheia de sonhos de um dia vir a ser alguém na vida.” Chegou no dia 26 de Novembro de 1936.
Joaquim tinha nascido na aldeia de Vilar Torpim, perto da Guarda. E desde pequeno sabia o que queria. Em Belém estava já um tio, irmão da sua mãe, que tinha uma filha, com a qual foi um dia passar umas férias a Portugal. “Quando o meu pai viu a prima, enlouqueceu. Ele tinha uns oito ou nove anos e ela uns 16, mas ele ficou alucinado”, continua João. “Quis dar um mimo à prima, e como adorava perninhas de rã foi fazer uma grande caçada de rãs e mandou preparar para ela. Quando chegou com as rãs, ela deu-lhe um tapa na mão e foi rã para tudo quanto é lado. Ela disse-lhe que não comia sapo, e o meu pai ficou injuriado e foi dizer para a avó que a prima era maluca e que tinha chamado as rãs de sapos.”
Apesar deste início atribulado, nasceu uma história de amor, e aos 14 anos Joaquim atravessava o Atlântico e ia viver para a cidade da prima: Belém do Pará. Começou por trabalhar como balconista numa empresa de materiais de construção, cujos donos tinham também um banco. O jovem Marques dos Reis rapidamente chamou a atenção de um dos directores, que quis que ele trabalhasse no banco, tinha 16 anos.
“O responsável pela carteira de câmbio do banco ia numa viagem a Portugal e naquele tempo ninguém ia para ficar lá um mês, ia um ano no mínimo.” Foi assim, graças à longa ausência do superior, que Marques dos Reis se viu à frente do departamento cambial.
“Nessa altura, a primeiríssima carteira era a do Banco do Brasil, depois havia a do Banco Nacional Ultramarino e a terceira era a do Moreira Gomes, o banco do meu pai. Era o tempo da guerra e o aeroporto de Belém começou como uma base militar americana. O meu pai ia com uma mesinha para o aeroporto fazer câmbios para os soldados, e fez uma tal movimentação que a Moreira Gomes ficou a número um.”
Ao mesmo tempo, o rapaz vindo da Beira Alta ia conquistando a numerosa comunidade portuguesa do Pará. “Naquele tempo havia muitos portugueses que eram carroceiros”, recorda João. “Não havia empresas de mudanças, então eram os carroceiros que as faziam e, coitados, eram portugueses que tinham vindo para o Brasil sem saber ler nem escrever. Chegavam ao banco de camiseta, tamancos, um pouco simplórios e o meu pai tratava-os como doutores, ó seu fulano, venha cá, sente-se aqui, do que é que o senhor precisa?” Geralmente, eles queriam mandar dinheiro para Portugal e, quando faltavam alguns cêntimos, Marques dos Reis arredondava com o seu próprio dinheiro. E ainda se disponibilizava para escrever as cartas que os homens não sabiam escrever e para ler as que eles recebiam.
Quando [o meu pai] desembarcou em Belém trazia uma fortuna enorme com ele. Trazia a noite, o dia, a maleta da roupa e uma cabeça cheia de sonhos de um dia vir a ser alguém na vida João Marques dos Reis, dono da agência de viagens Lusotur Havia na época no Pará um jornal chamado Folha do Norte (mais tarde O Liberal). “Um belo dia, saiu uma notícia: ‘Camião atropelou a carroça do português. Salvou-se o burro’”. Marques dos Reis, então com 19 anos, indignado, dirigiu-se à redacção do jornal para protestar. “Que aquilo não eram maneiras de se falar dos portugueses, que o dono do jornal devia ter mais cuidado e que devia abrir até um espaço para mostrar o Portugal que as pessoas não conheciam.” Foi de tal maneira convincente que o dono do jornal convidou-o a escrever sobre Portugal. “Os leitores começaram a procurar o meu pai, ‘pôxa que maravilha, não sabia que Portugal era assim’.”
Nasceu assim a página dominical Terras de Portugal, que começou em 1955 e foi escrita por Joaquim Marques dos Reis até 1998, altura em que passou essa incumbência ao filho, que continuou a assinar com o nome do pai. “O meu pai escrevia o manuscrito, passava à máquina, depois ia para o jornal, à noite, mas antes passava pela padaria, comprava uns dez pães-cacete, mandava passar manteiga, nuns punha queijo, noutros salame, levava garrafas térmicas de café e dava ao pessoal da oficina do jornal.”
Os textos sobre as terras de Portugal eram um sucesso tão grande que as pessoas começaram a perguntar: “Quando é que você nos vai levar a ver essas maravilhas que você escreve aí no jornal?” Marques dos Reis não era homem para ficar a pensar. Estávamos em 1960 e Portugal ia comemorar o centenário do Infante D. Henrique. Marques dos Reis, que era grande amigo de Salazar — “ninguém é perfeito”, diz o filho, rindo —, tomou uma decisão. “Fretou um Constellation à Panair do Brasil, pagou do bolso dele — tenho o recibo até hoje — e começou a divulgar a viagem no jornal.”
Em Maio de 1960, levanta voo de Belém um avião cheio de portugueses e brasileiros com destino a Portugal — foi a primeira Viagem da Primavera. Em Portugal foram recebidos em grande estilo, por políticos, deputados, e, claro, Salazar, e com direito a notícias nos jornais e na RTP. Ao fim de três viagens destas, o comendador Marques dos Reis foi avisado de que, não sendo agente de viagens, não poderia continuar.
“O meu pai sempre viajou muito, e perguntava-se porque é que não existia uma agência de viagens em Belém”. Mas como Marques dos Reis “fazia as coisas acontecer”, a sequência lógica dessa pergunta foi a criação da Lusotur, a agência de viagens que continua na família, dirigida actualmente por João Marques dos Reis. Hoje, numa altura em que a TAP se prepara para lançar, em Junho, o voo directo para Belém, João lembra que o pai foi o grande pioneiro, em 1966. “Nesse ano, a TAP ia fazer o primeiro voo de um Boeing para o Brasil. O prestígio do meu pai já era tão grande que conseguiu trazer o avião a Belém em Maio, um mês antes do voo inaugural. O avião voou de Belém a Lisboa com uma excursão da Lusotur.” João dá uma gargalhada. “Costumo dizer que quando fez a viagem inaugural em Junho era a noiva desvirginada.”
Durante as décadas seguintes, sucederam-se, em aviões fretados à Varig ou à TAP, as viagens para Portugal, vários países da Europa, Japão, Terra Santa, México, Estados Unidos e outros destinos. A melhor sociedade paraense aproveitava os voos para Portugal para levar as meninas a fazer o baile de debutantes no Casino do Estoril.
Entretanto, Marques dos Reis investiu também num hotel, o Equatorial Palace Hotel (hoje, com outro conceito, chamado Belém Soft Hotel), teve uma loja de materiais de construção, a Constrular, e continuou a promover Portugal no Pará até ao dia em que morreu. Foi em Novembro de 2001, na terra onde chegara 65 anos antes, com 14 anos, uma maleta de roupa, a cabeça cheia de sonhos e a paixão por uma certa morena que não gostava de comer rãs — mas que ainda assim quis casar com ele. A.P.C.

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